Iris Nabolotnyj Martinez
Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Christian Velloso Kuhn
Doutor em Economia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
“Eu sei que não vou morrer
Por que de mim vai ficar
O mundo que eu construí
O meu Rio Grande o meu lar
Campeando as próprias origens
Qualquer gurivai achar”
Origens, Antônio Augusto Fagundes/ Euclides Fagundes Filho
Essa música da família gaúcha dos Fagundes hoje apresenta outro significado. Com a catástrofe climática que se disseminou pelo estado do Rio Grande do Sul, atingindo 90% dos seus municípios e dezenas de milhares de habitantes, o mundo que construímos foi fortemente atacado e devastado, como nunca dantes em sua história. Mesmo a enchente de 1941 não causou tamanho estrago e mortes como a da atualidade.
Assim como na pandemia de 2020-2021, vivemos um “novo normal”. Estradas, avenidas e ruas alagadas e bloqueadas, igualmente aquelas que acessam a rodoviária e o aeroporto situados na capital. Casas, lojas e prédios destruídos, perdas materiais em residências e estabelecimentos comerciais.
Falta de abastecimento de água e alimentos básicos (pão, ovo, etc.). Nossa produção agrícola com forte risco de quebra de safra. Um jacaré e um cágado nadando nas ruas de Porto Alegre, um cavalo sendo resgatado num telhado em Canoas, uma vaca encontrada dentro de uma igreja em Taquari, são algumas das situações inusitadas no caos formado com as enchentes no estado. E o pior de tudo isso: centenas de mortos e desaparecidos e dezenas de milhares desabrigados.
Por causa disso, muitos passaram o segundo domingo de maio sem suas mães, seja porque estão longe (na praia ou em outras cidades), seja porque as perderam devido às enchentes. Diante desse cenário apocalíptico, por outro lado, nunca na história do RS o estado recebeu tanta atenção e apoio, não somente do restante do país, como de outros países.
Alguns atos simbólicos tocam a emoção dos gaúchos, como o discurso do Papa dirigido ao nosso povo e até o desenho do personagem Cascão andando no meio das águas. Mas a ajuda efetiva de governos, empresas e indivíduos é a que mais tem feito a diferença. Uma onda de solidariedade vem se espraiando pelo estado, comovendo a todo povo gaúcho. Seremos eternamente gratos.
Já os gaúchos vêm se comportando das formas mais diversas. Muitos voluntários se somam aos profissionais da Defesa Civil para resgatar sobreviventes, ou se juntam com entidades da sociedade civil para abrirem locais de abrigo e doação de mantimentos, roupas e demais itens básicos.
Todavia, uma minoria individualista se omite, nega os fatos e até dissemina fake news, mais atrapalhando do que ajudando nesse momento tão crítico porque estamos passando.
Assim, o recente desastre suscita reflexões sobre o comportamento humano e suas interações sociais. Como interpretar tais dinâmicas? Acreditamos que as contribuições teóricas de pensadores políticos como Thomas Hobbes e Robert Putnam servem de arcabouço analítico muito útil para a compreensão dos eventos ocorridos.
Até mesmo Adam Smith, através de sua obra Teoria dos Sentimentos Morais, pode ajudar a compreender melhor o momento por qual estamos passando. Em adição, a perspectiva de Bell Hooks sobre o amor enquanto ação política acrescenta uma camada de análise, sugerindo a possibilidade de transformação dos fundamentos individualistas do capitalismo e a consequente construção de uma nova ordem social.
As inundações deixaram uma marca indelével em todo o estado, exigindo uma interpretação criteriosa desses acontecimentos. Hobbes, em sua abordagem, destaca a propensão humana para a competição e o egoísmo, especialmente na ausência de regras normativas de governo. Ele argumenta que, sem esses balizamentos institucionais de ordem e controle, os indivíduos tendem a buscar exclusivamente seus próprios interesses, resultando em uma dinâmica caótica de concorrência e individualismo predatório.
Em Porto Alegre, capital do estado, e região metropolitana, observa-se a manifestação desses fenômenos políticos, evidenciados, além dos citados anteriormente, também por incidentes como assaltos a barcos envolvidos em resgates de ilhados pela enchente, abusos sexuais a mulheres e pedofilia a crianças perdidas de seus pais em abrigos coletivos, assim como as já mencionadas desavenças sobre narrativas e desinformação nas redes sociais, tanto à esquerda quanto à direita, sobre quem está efetivamente auxiliando nos resgates.
Até o momento, muitas investigações estão em curso e mais de sete pessoas foram detidas. Por outro lado, e em número proporcionalmente maior, observa-se a destacada atuação de mais de 15 mil voluntários, bem como o envio de insumos de várias partes do país e o apoio de pessoas de outros estados e países engajadas nessa causa.
Essas ações corroboram a teorização de Putnam sobre a cooperação e a solidariedade como elementos fundamentais para a superação de desafios coletivos. Em sua perspectiva, a união em torno de um objetivo comum potencializa a capacidade de enfrentar adversidades, fortalecendo a coesão social, a democracia, a cidadania, a confiança e o capital social, que se reflete na ampla recepção de recursos e insumos pela região.
Apesar da situação apresentar características atípicas que adicionam complexidade à análise, e que não devem ser equiparadas aos fenômenos analisados pelos teóricos políticos anteriormente citados, é possível perceber que a sociedade está avançando em direção ao fortalecimento da consciência coletiva.
Nesse contexto, destaca-se um fenômeno notável: diante da devastação ambiental generalizada, mesmo depois da ascensão recente de ideologias pregadoras do individualismo e liberdade desenfreados, observa-se uma mobilização sem precedentes da sociedade civil.
Milhares de voluntários, organizações não-governamentais e comunidades inteiras uniram-se em uma demonstração contundente de solidariedade e resiliência a partir do slogan “é o povo pelo povo”, contribuindo ativamente para a reconstrução e apoio às vítimas.
A abordagem de Bell Hooks adiciona uma dimensão peculiar a esse debate. Ao conceber o amor como uma ação política de compromisso e responsabilidade, ela sugere a possibilidade de subverter as bases individualistas do capitalismo, fomentando a construção de uma sociedade fundamentada em valores de cooperação e compaixão.
Convém lembrar que Adam Smith, em sua obra aqui já destacada, não obstante os indivíduos manifestarem egoísmo em certas situações, reconhecia que estes se interessavam pelo bem-estar de seus pares, considerando como uma necessidade para si mesmos, ainda que não obtenham qualquer benefício diretamente com isso. Ou seja, para Smith, a solidariedade suplantava o egoísmo dos indivíduos.
Dessa forma, diante da crise atual, é pertinente considerar essas diversas perspectivas teóricas. O diálogo entre as visões de Hobbes, Putnam, Smith e Bell Hooks possibilita uma análise multifacetada da tragédia, além de suscitar reflexões importantes acerca do futuro da sociedade e das formas de organização social.
Contudo, por ora, não é momento de apontarmos culpados. Essa hora chegará. Mas devemos estar cientes de que o problema não é somente de agora.
Segundo reportagem da Agência Lupa, as catástrofes causadas por chuvas elevaram 365% nas últimas três décadas no RS. Portanto, agora é hora de deixar nossas diferenças de lado e nos unir em torno do que temos em comum: conter o avanço e destruição causada pelas enchentes, garantindo a sobrevivência das pessoas e animais.
Oportunamente, teremos tempo para refletir sobre quais valores e crenças serão mais necessários para a reconstrução de nossas vidas, que ações e planos de contingência precisaremos elaborar e pôr em prática e até mesmo quem serão os agentes e instituições mais capazes de empreender tais medidas.
Precisaremos reavaliar nossas preferências e atos recentes, não somente os gestores públicos e políticos, mas toda a sociedade civil. Será salutar que façamos isso juntos e coesos.
Um novo pacto social requer ser firmado. Lutaremos unidos em prol do combate às mazelas sociais e ambientais que estamos enfrentando, evocando nossa tradição histórica de batalhas por nossa terra.
Como cantarolava Leopoldo Rassier, em “Não Podemo Se Entregá pros Home”, “não está morto que luta e que peleia, pois lutar é a marca do campeiro”. Porém, essa luta será pelo amor que nutrimos por nossa gente e nossa terra natal.
O amor ressaltado nos versos de Leonardo, em “Céu, Sol, Sul, Terra e Cor”: “É o meu Rio Grande do Sul céu, sol, sul, terra e cor, Onde tudo que se planta cresce e o que mais floresce é o amor”.
Que cultivemos esse amor que nos dará a esperança de dias melhores, com a cooperação, compaixão e solidariedade tão bem preconizadas por Bell Hooks e Putnam.