Eneida Desiree Salgado
vice-presidenta da Fundação Leonel Brizola-Alberto Pasqualini no Paraná, candidata ao Senado em 2022. Possui mestrado e doutorado em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com pós-doutorado na Universidad Nacional Autónoma de México e no Programa de Ciência Política da UFPR.
A democracia liberal, com todas as suas promessas, seu primado de igualdade perante a lei, não alcançou garantir uma sociedade igualitária. Ao partir de um sujeito transcendental e da presunção da objetividade da lei, o Direito produzido, interpretado e aplicado por uma identidade parcial – masculina, branca, cis, heterossexual e proprietária – mantém, ou por vezes acentua, a desigualdade na sociedade.
Essa desigualdade estrutural é essencial para o modo de produção capitalista. Por conta da centralidade da estrutura econômica, muitas vozes no campo democrático defendem que a luta a ser feita na política é a luta de classes. Toda e qualquer luta que busque o reconhecimento de pertencimento é vista como algo negativo, que enfraquece a busca pela igualdade. Por vezes, a análise dessas lutas chega a tratar as pessoas que estão defendendo seu direito de existir, de exercer seus direitos e de participar politicamente como fantoches nas mãos de interesses estrangeiros para enfraquecer os movimentos políticos progressistas no país.
Ao se analisarem os próprios movimentos políticos progressistas, no entanto, o que se enxerga é a manutenção das desigualdades. Há racismo e há machismo no campo democrático. Há misoginia, há reserva das estruturas de poder para aquele que reúne as características do tal do sujeito transcendental. Também no campo que batalha pela superação do capitalismo, as estruturas de exclusão permanecem.
Há quem tente nos convencer que basta esperar. Que com um pouco (mais) de paciência, e alcançando a igualdade econômica, esses grupos social e culturalmente subalternizados a serviço do poder participarão da arena política, da tomada de decisões nos espaços público e privado.
Em relação às mulheres, alguns avanços vêm acontecendo, curiosamente pelo Poder Judiciário. Seja pelas intervenções na interpretação das regras eleitorais, pelo Protocolo para o Julgamento com Perspectiva de Gênero ou pela Resolução 525 do Conselho Nacional de Justiça, quem aplica o Direito já se deu conta que a Constituição determina uma igualdade material, a igualdade pela lei e não simplesmente perante a lei.
Nos poderes eletivos, no entanto, os avanços sempre vêm acompanhados de retrocessos. Há cotas de candidaturas, criadas com aumento da nominata e sem obrigatoriedade de preenchimento e sem imposição de destinação de recursos. Ou seja, uma política insincera, feita para ter os resultados pífios que tiveram. Para as mulheres, só um aceno – nada de participação política efetiva.
Entre candidaturas fictícias e violência política de gênero, as mulheres passaram a participar do cenário político como objetos. Fala-se sobre elas, por elas, mas não se deixa que falem. E quando falam, quando se organizam politicamente para defender um ponto de vista, são consideradas culpadas por qualquer retrocesso (teve até gente que culpou o #elenão pelo resultado das eleições de 2018).
Em pleno século XXI, um projeto de lei resolve deixar um pouco mais evidente o que parte da representação política pensa ser o papel das mulheres no Estado Brasileiro. O Projeto de Lei 1904/2024, apresentado na Câmara Federal por Sóstenes Cavalcante, do Partido Liberal do Rio de Janeiro e outros parlamentares, propõe modificações no Código Penal, reduzindo as hipóteses de interrupção voluntária da gestação autorizada por lei.
Se a mulher estiver com mais de 22 semanas de gestação, a interrupção da gravidez será punida como homicídio, mesmo se a gravidez for decorrente de estupro (cuja pena é menor que a do homicídio) ou se se tratar de uma menor de idade. Muitas vezes quando uma criança é vítima de violência sexual e engravida, a gravidez não é percebida logo. Nos casos de estupro, se colocam numerosos obstáculos para o procedimento para interromper legalmente a gestação.
Propondo um retrocesso em face de uma legislação de 1940, o que se quer é aumentar o controle sobre as mulheres. Sobre nossos desejos, nossos corpos, nossos futuros. Em um país em que um estupro ocorre a cada oito minutos, obrigar mulheres e meninas a gerar uma criança de um estuprador é uma violência, uma tortura. Ou, ainda, empurrar mais mulheres para procedimentos clandestinos, o que leva à morte de uma mulher a cada dois dias.
O autor principal do projeto afirmou que a proposta vai servir para testar a promessa do presidente eleito com a comunidade evangélica. Analistas dizem que o presidente da Câmara colocou o pedido de urgência para a tramitação do projeto em pauta com o olho na eleição para a mesa diretiva e ao apoio da bancada evangélica.
É nítido que representantes políticos estão ameaçando direitos fundamentais, usando os corpos e a dignidade das mulheres, como arma política. Mulheres como objeto de poder, não como cidadãs, integrantes da arena política, participantes dos processos de tomada de decisão. Uma distopia mais assustadora do que O Conto da Aia de Margaret Atwood e de Vox de Christina Dalcher.
Assim, com esse cenário escancarado, o que se espera é a resistência do campo democrático e progressista. Que parlamentares estejam a postos para recusar esse projeto e avançar na concretização dos direitos das mulheres. E que finalmente se compreenda que a luta por reconhecimento é uma questão de sobrevivência e que se esperarmos a superação do capitalismo para alcançarmos a igualdade política de gênero talvez sobrem poucas de nós para ocupar os espaços de poder.